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Quando a escola fez silêncio

Mônica Ferreira Costa - Pedagoga, Psicóloga, Mestranda em Educação na Unisantos

Mônica Ferreira Costa

12/12/2021 - domingo às 17h24

Dedico este texto a todas professoras e professores, agentes indispensáveis na formação do humano.
 

Se há um lugar barulhento por natureza esse lugar é a escola. Sem dúvida há outros espaços nos quais o barulho rola solto, como nos campos de futebol, em dias de jogo, boates, nos finais de semana ou as feiras de rua, de terça a domingo. Lugares onde tudo é gritaria e confusão. Mas escola tem um barulho diferente, um barulho que ri, grita e corre. Barulho que nem precisa de música, jogo, peixe ou coisa alguma para ser assim: barulhenta.

São as crianças. São elas que produzem, carregam e mantem esse barulho risada e correria, que na verdade acontece mais solto quando é recreio. Explico aos novinhos que recreio é um nome das antigas, dado há muito tempo para o famoso momento do intervalo.

Aqui rendo singela homenagem à revista que carregava esse nome bom: Recreio. Adorava a Revista Recreio, que durou um tempão e em sua primeira edição, lá pelos idos de 1969, era vendida nas bancas de jornal. Difícil era na minha infância esperar um mês inteirinho para comprar a Recreio e ter nas mãos diversão garantida, pelo menos por uma semana.
        
Digo tudo isso só para lembrar que num momento esquisito lá pelos idos de março de 2020 algo que há muito não acontecia aconteceu: por ordem e decreto do governador; as escolas pararam.

A pandemia da Covid 19 estava no Brasil fazendo um grande estrago e o risco de atingir às crianças era uma possibilidade, por isso a ordem foi: fiquem em casa. A princípio foi muito bom, pareciam férias inesperadas. Pleno março e podíamos dormir até mais tarde, almoçávamos tarde e dormíamos tarde, novamente. Tudo fora da ordem.

Período cuja estranheza deu lugar, rapidamente, à preocupação, ao medo e à tristeza. As tais férias não duraram dez dias. Nós professoras e professores tínhamos agora pela frente muito trabalho a fazer, uma vez que a Secretaria da Educação havia resolvido que o ano letivo teria que acontecer de forma remota, isso é, passaríamos a lecionar via internet. Passamos a nos perguntar: como? Será que as crianças têm recursos? Será que todas as famílias têm computadores, celulares? Montamos grupos nos aplicativos para descobrir muitas coisas. Como atender os alunos que não tinham computadores, notebook ou celulares? Para os que tinham algum equipamento, como era o pacote de dados, qual internet utilizavam e qual a qualidade dessa rede? Enfim, um mundo todo que se impunha e era chamado do “novo normal”. 

Montamos novos calendários, porque ficou claro que não conseguiríamos atender todas as crianças de uma única vez, muito menos por tantas horas. Passamos a trabalhar mais horas para aprender e poder ensinar às crianças como acessarem e ficarem nas salas de aula virtual. Nosso trabalho agora estava dentro de casa, precisávamos isolar um espaço e prepara-lo, para pendurar o celular, sem que ele caísse, balançasse, tinha que ter luz, um fone de ouvido e, ainda, tentar um certo silêncio...

Mas nossos filhos também estavam em casa, assim como a roupa na máquina, o cachorro latindo e a campainha tocando; tudo junto e misturado. Uma loucura que acreditávamos iria acabar logo e, então, teríamos muitas histórias para contar e juntos rirmos das peripécias que cada um teve que montar para continuar lecionando e vivendo. Sim, porque viver agora, em tempos de pandemia, exigia muita atenção. Esquemas para sair e voltar de casa, levando máscara e álcool gel como os imprescindíveis companheiros de trajeto.

Nada foi rápido. Nada foi fácil. Nada foi bom.

Se no começo as crianças achavam engraçado dizer toda aula: “professora liga o som”, depois não tinha mais graça. Se tudo no começo era novidade e mostrar o gato, o cachorro, o peixinho era importantíssimo, ou se contavam que estavam de pijama assistindo aula e todos riam, depois de meses tudo era desanimo, cansaço e tristeza pela faltava do contato.

Faltava o barulho. Faltava o jogo de bola, as conversas, a correria do recreio, fazia falta até os gritos dos inspetores: “Não corre fulano. Desce daí cicrano. Vai lavar a mão, beltrano”...  As crianças não queriam mais “brincar” de aula no computador. Não abriam as câmeras, se distraiam com qualquer coisa e a pergunta de todos os dias era: “quando a gente vai voltar pra escola, professora?”

Mas um dia foi pior.  Uma aluna com muita raiva disparou: “será que nunca mais a gente vai ficar junto? Eles não têm vacina pras crianças? Então, a gente vai morrer?”

É muito difícil responder para uma criança, de oito anos, coisas que você, como adulto, também não sabe. Não por prepotência ou arrogância de pensar que professores devem saber tudo. Não. A questão era que ao não ter aquelas respostas tive medo de contar para ela que eu me perguntava as mesmas coisas, todos os dias.

Foi assim, dizendo dos meus medos, que as crianças, naquele dia, voltaram a abrir suas câmeras e a prestar mais atenção no que eu estava tentando dizer a elas.

Respondi com meu coração: “Eu não sei. Eu não sei quanto tempo vai demorar para que a gente se veja novamente, de bem pertinho e eu possa abraçar vocês como eu fazia quando chegavam. Eu não sei se a vacina que está começando a ser dada agora, para os velhinhos, também será dada para as crianças. O que eu sei é que esse vírus é tão ruim que nem gosta de criança. Imagina que “bicho” ruim é esse, que não gosta de crianças... Vocês viram que poucas crianças ficaram doentes? Então, vamos fazer um acordo? De hoje em diante a gente vai contar de alguém que ficou doente. Vamos dividir o que estamos sentindo e pensando e quando a gente estiver muito triste, como eu estou agora, a gente vai poder chorar junto. O que vocês acham?”

Foi uma choradeira total!
Foi bom.
Choramos juntos e nos consolamos...

Naquele dia inauguramos um novo ciclo, entre nós. Passamos a dividir mais nossas intimidades, curiosidades; e novas parcerias para ensinar e aprender aconteceram. Ensinar matemática era também discutir os números de mortos, porque as crianças passaram a perguntar o que era “média móvel”, “porcentagem”, “número de infectados”; palavras e expressões diárias que ouviam na TV e em casa, mas não compreendiam e também não haviam perguntado a ninguém.

Assim, fomos nos ajudando, diariamente, a superar os gráficos e os trágicos. Eu perdi meus amigos e contei para eles e as crianças que perderam seus parentes também contaram. Encontramos, ou melhor, construímos a nossa sala de aula que era esse lugar de aprender, ensinar e chorar. Conseguimos falar sobre a morte, suas consequências nossos medos e raivas. Um aluno perdeu a mãe para a Covid e deixou nossa escola, pois foi morar com a avó em outra cidade. Sem cabimento, uma vez que estávamos com aulas online, mas a velhinha achou melhor levar o neto para uma escola mais perto da casa nova. Coisas assim: tristes, reais e irreparáveis.

Conseguimos terminar o ano letivo. Desisti de tentar saber o quê e quanto, realmente, aquelas crianças haviam aprendido dos conteúdos de matemática, de língua portuguesa ou de qualquer outra disciplina. O que eu sei é que elas aprenderam muitas coisas neste ano. Eu também, aprendi muito sobre como ser professora e o quanto dói quando uma escola fica em silêncio.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal BS9

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