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Entrevista de Domingo

Pioneiro da bariátrica na Baixada, doutor Leal diz por que também aderiu à cirurgia

Médico que realizou a primeira cirurgia em 2000 fala sobre o procedimento pelo qual passou e outras histórias de vida

Por Alexandre Fernandes - Redação BS9

22/08/2021 - domingo às 07h00

Antonio Joaquim Leal em sua clínica, onde também trabalham a mulher e os filhos, todos médicos - (foto: redação BS9)

"Tudo na vida tem a sua hora". Essa frase sempre pautou as decisões tomadas pelo cirurgião Antonio Joaquim Ferreira Leal. Pioneiro da cirurgia bariátrica na Baixada Santista, ele decidiu que estava tudo pronto para realizar o primeiro procedimento de redução de estômago em 2000. E só agora, 21 anos depois e com mais de 5.500 cirurgias no currículo, decidiu que ele próprio estava pronto para entrar na faca, o que aconteceu no dia 28 de maio.
 
Essas são só duas das várias demonstrações de coragem desse português da freguesia de Chãs, em Vila Nova da Foz Côa. Que decidiu, ainda criança, que queria ser médico; que decidiu deixar os pais para trás e vir ao Brasil para trabalhar com o tio em um restaurante; que decidiu se casar e ter um filho mesmo sem ter concluído o curso de Medicina. E que em outubro de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, decidiu aceitar o desafio de presidir a Associação Paulista de Medicina - Santos (APM Santos).
 
Prestes a completar 64 anos e já com 20 quilos a menos, doutor Leal, como é carinhosamente chamado, fala nesta Entrevista de Domingo sobre todas essas histórias e os rumos da cirurgia que ajudou a popularizar.
 
1 - O senhor realizou a primeira cirurgia bariátrica na região, em 2000. Quais eram as dificuldades naquela época?
Foi tudo muito difícil porque era uma cirurgia relativamente nova. Hoje ela tem 50 anos. Nós precisamos criar um esquema e optamos pela Beneficência Portuguesa. Colocamos o projeto para os administradores na época, pro tesoureiro. Ele entendeu, comprou uma maca adequada, carrinho para que pudesse suportar uma boa anestesia nos pacientes. Foi reformado um apartamento no 6º andar, com vaso sanitário que pudesse suportar um paciente bastante pesado; cama diferente. Todas essas condições foram idealizadas por mim, cobradas junto ao hospital, e eles acreditaram no projeto e deu certo. Tenho 36 anos de formado e 21 anos de cirurgia bariátrica. Mais de 5.500 pacientes foram operados por mim. Só de bariátrica. Sem contar hérnia, vesícula, estômago, intestino... Tenho tudo catalogado. O que se fazia no passado é incomparável com as técnicas que nós usamos hoje, com a videolaparoscopia. Dor, desconforto, hoje, incomparavelmente menores. Um dia, um dia e meio de internação. Nos últimos dez anos essa tecnologia da videocirurgia tornou o procedimento muito mais acessível à população. Tornou-se obrigatório pelos convênios.
 
2 - Para ser submetido à bariátrica, o paciente precisa passar por vários processos, atender a vários pré-requisitos. E o número de cirurgias cresceu no Brasil. Houve um afrouxamento nesses processos, facilitando o acesso até de gente que não precisaria operar?
O que houve foi uma procura maior. A bariátrica tornou-se muito mais acessível, mais segura, e isso chamou a atenção das pessoas que antes tinham mais medo. Mas os critérios sempre foram os mesmos, baseados no índice de massa corporal (IMC), que é o peso dividido pela altura ao quadrado, e a presença ou ausência de doenças associadas. Se o IMC for maior ou igual a 40, significa que a pessoa tem obesidade mórbida, classe 3. Mesmo só tendo obesidade, não tendo nenhuma doença, ela já pode pleitear a cirurgia. A obesidade de classe 2 é para IMC entre 35 e 40. Nesse caso, podemos operar desde que a pessoa tenha alguma comorbidade. Existem pessoas que não são tão obesas, mas são muito doentes. De alguns anos pra cá, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica passou a se chamar Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica porque houve uma coincidência de acontecimentos. A gente via que operava os pacientes que eram hipertensos, diabéticos e obesos, e esses pacientes, ao perderem peso, ficavam curados. E foi aprovada em 2017 pelo Ministério da Saúde a cirurgia metabólica para paciente diabético magro, com índice de massa corporal de 30 a 35. Mas esses são casos excepcionais.

 
"Era tudo muito desconhecido sobre o coronavírus. Ainda é, apesar dos avanços. Mas naquele começo sabíamos
muito menos. Ficamos alguns meses sem operar. Mas a obesidade é um fator de risco.
Os pacientes de maior risco são pacientes obesos"

3 - Como foi o cenário da cirurgia bariátrica durante a pandemia e como está a situação agora?
Era tudo muito desconhecido sobre o coronavírus. Ainda é, apesar dos avanços. Mas naquele começo sabíamos muito menos. Ficamos alguns meses sem operar. Mas a obesidade é um fator de risco. Os pacientes de maior risco são pacientes obesos. Principalmente quando eles têm doenças associadas, diabetes, hipertensão. E é sabido que esses pacientes, uma vez operandos, passam a não ser mais grupo de risco. A cirurgia de obesidade foi motivo de discussão em nossa Sociedade, e fomos orientados a não parar com essa cirurgia. Não que fosse uma cirurgia de urgência, porque não é. Mas quanto mais rápido você conseguir diminuir a agressividade da obesidade e evitar pressão alta e diabetes desses pacientes, tanto melhor. Esses pacientes saem do grupo de risco e passam a ser indivíduos normais. No início desse ano ficamos dois meses sem operar porque não tinha vaga e também ficamos sem drogas anestésicas. Esses medicamentos estavam sendo priorizados para as UTIs Covid.

4 - Em outubro de 2020, durante a pandemia, o senhor assumiu a presidência da APM Santos. Qual foi a motivação para tomar essa decisão e o que o senhor tem feito à frente do órgão?
Eu sempre frequentei muito a associação. Já fiz parte do Departamento Científico de lá. Eu fui convidado pela minha amiga Ana Beatriz Soares, vice-presidente. Eu relutei um bocadinho, mas aceitei o desafio. Eu encaro com seriedade, com responsabilidade, tentando agregar os médicos com objetivos não só científicos, mas também sociais. Tornar aquele espaço como extensão da nossa casa. Ao mesmo tempo levar a Associação para a periferia da nossa cidade, junto à Prefeitura, junto ao trabalho que a Secretaria de Saúde desenvolve. E está dando certo, apesar da pandemia. Apesar de algumas modificações, estamos tentando tornar aquele espaço mais aconchegante. Estamos com um restaurante maravilhoso. É aberto à comunidade, de terça a domingo, no horário do almoço. Teremos o 10º Congresso Médico da Associação de Medicina de Santos, de 18 a 22 de outubro, virtual, com quatro ou cinco palestras por dia, envolvendo várias especialidades, sobre avanços, novidades tecnológicas, como robótica.

 
"Eu optei em fazer só agora porque eu farei 64 anos em outubro e estava com 120 quilos. Já estava começando a ter pressão alta,
o meu colesterol estava um pouco elevado, a minha glicemia já estava subindo um bocadinho. Se eu sei qual é o remédio,
por que eu não vou fazer? Emagreci 20 quilos. Estou ótimo"

5 - Depois de operar tanta gente nessas duas décadas, o senhor resolveu neste ano se submeter ao procedimento também. Por que só agora?
Tudo na vida tem a sua hora. A pessoa que opera tem que mudar a vida. A cirurgia não é promessa de cura eterna da doença. A obesidade mórbida não tem cura, ela tem controle. Com mudança comportamenatl, atividade física. Largar hábitos alimentares ruins. Eu optei em fazer só agora porque eu farei 64 anos em outubro e estava com 120 quilos. Já estava começando a ter pressão alta, o meu colesterol estava um pouco elevado, a minha glicemia já estava subindo um bocadinho. Se eu sei qual é o remédio, por que eu não vou fazer? Emagreci 20 quilos. Estou ótimo. É gratificante. Acontece exatamente aquilo que eu falo para os pacientes. A qualidade de vida, o gosto pela vida, a felicidade nas pequenas coisas. Já estou andando de bicicleta, afinal de contas eu tenho que dar exemplo. Sirvo de espelho para meus pacientes.

6 - Entrando um pouco na sua história de vida, quando o senhor decidiu que queria ser médico?
Eu sempre quis ser médico. Pensando um pouco melhor agora, eu tenho influência dos meus dois "avôs". Por parte do meu pai, era o seu Antonio Augusto Leal. Ele era pastor. De vez em quando, uma das cabras caía de cima do muro e quebrava a pata. Se sacrificasse a cabra, era um prejuízo grande, né? Então, meu avô consertava as pernas quebradas das cabras, usando uma tala de bambu com panos amarrados lá. Ele foi desenvolvendo tanta habilidade que depois começou a passar isso pras pessoas que apresentavam contusão, que quebravam a perna, entorse, luxação, só usando azeite, fazendo massagem. E por parte da minha mãe, meu avô Manoel dos Anjos. Ele era lavrador de dia. À noite ele aplicava injeção, arrancava dente, fazia barba, drenava abcessos. Apelidaram ele de Manoel da Noite. Ele era um cirurgião, sabe? Não tinha conhecimento nenhum, mas tinha o dom de fazer essas coisas. E o cirurgião-barbeiro é uma figura que existe na história da Medicina. Aquele que andava de carroça, de cidade em cidade, vendia tônicos, cortava barba, arrancava dente, fazia pequenos procedimentos cirúrgicos. Então, eu acho que, de alguma forma, eu tive uma influência genética ou pelo menos familiar por conta da convivência que eu tive com os meus avós.
 
7 - E para manter essa tradição, o senhor não só se tornou médico como constituiu uma família de médicos...
Conheci minha mulher Roselena antes da faculdade, no cursinho. Começamos a namorar, entramos na faculdade. Ela entrou aqui em Santos, eu entrei fora, mas vim pra cá no segundo ano. Fizemos a faculdade na Fundação Lusíada. Casamos no terceiro ano. No quinto ano nasceu nosso filho Lucas, que já foi com a gente na formatura, no sexto ano. Depois nasceu a Clarissa, já estávamos formados. Os dois são médicos, trabalham com a gente na clínica também. Hoje tenho quatro netos e mais uma netinha, a Helena, da primeira gestação da minha filha, que infelizmente faleceu precocemente, logo que nasceu. Mas temos quatro artistas lá em casa, maravilhosos... Dois do Lucas e dois da Clarissa. Essa é a nossa família. A gente gosta muito daquilo que faz.
 
8 - É verdade que o senhor trabalhou em restaurante quando chegou ao Brasil?
Eu vim pra cá em 1970. Meu tio José Leal, que é dono do restaurante Olímpia, foi passar férias em Portugal, em 1968. Ele me convidou pra vir pro Brasil e eu não deixei mais meu pai e minha mãe descansarem. "Eu quero ir pro Brasil, eu quero ir pro Brasil"... Naquela altura, existia pouca possibilidade de eu me tornar médico em Portugal, de eu fazer uma faculdade lá. As únicas formas eram tendo dinheiro ou entrando para o seminário. Eu vim para o Brasil pra trabalhar, mas sempre com aquela ideia, quero fazer alguma coisa na minha vida. Cheguei no dia 21 de maio. Trabalhei lá no Olímpia durante nove anos, na casa, no salão. Só não fui garçom, mas eu servia as mesas, cozinhava. Tanto é que eu hoje eu gosto bastante de cozinhar. Foi a melhor escola que tive na minha vida. Essa convivência com pessoas de várias idades, de várias profissões. Só parei de trabalhar lá quando eu entrei na faculdade, mais precisamente quando eu casei.
 
9 - E tem algo desse período no restaurante que o senhor aplicou em sua carreira como médico?
Eu não tenho dúvida nenhuma de que essa vivência que eu tive no restaurante foi boa, lidar com um monte de tipos de gente. Trabalhadores, fornecedores, entregadores, cozinheiros. O tratar bem não está no livro. Ele está na própria vida. Eu sempre fui uma pessoa muito transparente, muito clara, coerente com aquilo que acredito. Graças a Deus eu tenho bastante amigos, até pelo meu comportamento. A vivência que eu tive no restaurante, toda a educação, tudo aquilo supriu a falta dos meus pais. Veja, eu fiquei 11 anos, depois que vim de Portugal, sem ver meus pais, sem ver minhas duas irmãs. Eu só voltei a ver a minha família quando eu casei, em 1981. Tudo foi muito sofrido, mas, com certeza, o relacionamento que hoje eu tenho com os pacientes aqui na clínica, de olhar nos olhos, franqueza de informação, eu aprendi, a vida me ensinou essas coisas. Médico tem que ter dom, não tem jeito. Primeiro você tem que querer fazer, porque a gente lida com a vida dos outros.

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