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Análise

Para especialista, a lei do clube-empresa, sozinha, não irá salvar os clubes

Em entrevista, advogado Rafael Cobra fala sobre esse e outros assuntos ligados ao direito desportivo

Alexandre Fernandes - Redação BS9

09/01/2022 - domingo às 17h03

A proteção e majoração das indenizações aos clubes formadores é um item que pode ser melhorado, na avaliação de Rafael Cobra - Divulgação/Tática Assessoria

Mesmo quem não acompanha a fundo o noticiário esportivo viu recentemente a notícia de que o ex-atacante Ronaldo Fenômeno comprou o Cruzeiro, clube que o revelou na década de 90 e que vive hoje a maior crise financeira de sua história. Esta semana, o empresário norte-americano John Textor desembarcou no Brasil para acertar os detalhes da compra do Botafogo, outro clube que está entre os maiores devedores do futebol brasileiro.
 
Essas aquisições se tornaram possíveis graças a uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em agosto de 2021, que permite a criação da SAF (Sociedade Anônima do Futebol), popularmente chamada de clube-empresa. Por meio dessa modalidade, os clubes de futebol poderão receber recursos de pessoas físicas, jurídicas e fundos de investimento.
 
Essa Lei das SAFs ou do Clube-Empresa, como ela vem sendo chamada, tem sido vista por muitos como uma salvação da lavoura e é possível que outros clubes sigam o exemplo de Cruzeiro e Botafogo. Mas não é bem assim. "A lei, por si só, não resolverá o amadorismo e falta de responsabilidade de dos gestores dos clubes nacionais", diz o advogado Rafael Cobra de Toledo Piza.
 
Rafael Cobra tem sido cada vez mais requisitado para comentar esse e outros assuntos ligados a uma área que não é nova, mas ganhou grande destaque principalmente neste século: o direito desportivo. Para se ter uma ideia, a subseção da OAB Santos possui uma comissão voltada para esse tema, da qual ele é o presidente, e até promove cursos abertos a quaisquer interessados, não necessariamente advogados.
 
Além das SAFs, o especialista falou nesta Entrevista de Domingo do Portal BS9 sobre outras questões inerentes ao direito desportivo, mas que chamam a atenção dos torcedores no noticiário, como a atuação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), atrasos de salários por parte dos clubes e até transferências de jogadores. É bom lembrar que a polêmica ida de Neymar do Santos para o Barcelona em 2013 foi parar no TAS, o Tribunal Arbitral do Esporte.

1 - O senhor ministra cursos sobre direito desportivo há alguns anos. Quando o senhor começou e o que o fez se interessar por esse tema?
O primeiro passo foi o natural encontro de duas paixões: o Direito e o Esporte, mais precisamente o futebol. Terminei a faculdade de Direito no momento em que entrava em vigor a Lei Pelé (Lei 9.615/98), modificando grande parte da estrutura jurídica no mercado do futebol existente até aquele momento, com atenção especial ao fim do “passe” nos atletas profissionais de futebol. Abria-se um caminho muito interessante para atuação jurídica neste fascinante mercado, mas, à época, eram raras as doutrinas especializadas e, naturalmente pelo exíguo tempo, o Poder Judiciário ainda não tinha jurisprudência sobre os principais temas. Ao longo do tempo foram criados cursos, eventos, palestras sobre o Direito Desportivo, avançando para cursos de especialização lato sensu até, atualmente, termos as primeiras turmas de Mestrado específico nesta área. Honrosamente presidi a Comissão de Direito Desportivo da OAB/Santos por três oportunidades, onde buscamos ampliar o alcance e fomentar o estudo e debate dos temas ligados ao Direito e Esporte.
 
2 - O direito desportivo parece ser, pelo menos para nós, brasileiros, uma área relativamente nova. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva, por exemplo, começou a aparecer no noticiário com mais frequência na década de 90. A que o senhor atribui essa relevância que o tema ganhou de lá para cá?
Pode-se dizer que a história da Justiça Desportiva no Brasil se inicia com a Resolução do Conselho Nacional de Desportos (CND) nº 4, de 1942, que obrigava a criação de tribunais de penas à cada federação estadual, que em nada se assemelham ao formato atual de nossa justiça desportiva. Avançando no tempo, podemos dizer que o grande marco foi o reconhecimento desta justiça especializada na Constituição Federal de 88, que traz em seu artigo 217 previsões expressas neste sentido. Com a edição da Lei Pelé, regulou-se o funcionamento da Justiça Desportiva e resolução do Conselho Nacional do Esporte (CNE) de 2003 normatizou nosso atual Código Brasileiro de Justiça Desportiva, alterado ao longo dos anos, aplicável a todas as modalidades esportivas no Brasil. Em um passado não muito distante, de fato, as decisões dos Tribunais de Justiça Desportiva do futebol tiveram grande impacto nas competições esportivas, lembrando a anulação de jogos em 2005 e o “caso Lusa” em 2013. As questões relacionadas à disciplina e competição esportiva são de competência exclusiva da Justiça Desportiva e, por tal razão, suas decisões têm sido cada vez mais utilizadas pelos clubes e atletas envolvidos nos campeonatos disputados em nosso país.
 
3 - Ainda sobre esse papel de destaque do STJD, parte da imprensa esportiva o critica por "interferir demais" nas competições e, supostamente, sempre beneficiar clubes mais tradicionais ou que teriam mais força nos bastidores. Como o senhor vê essa questão da credibilidade do STJD?
Os Tribunais de Justiça Desportiva são formados por auditores (julgadores) indicados pelos clubes, atletas, federações, OAB e árbitros para, em tese, garantir paridade entre os envolvidos nas competições esportivas. As decisões são proferidas dentro da discricionariedade e livre convencimento dos auditores e creio na isenção e lisura dos julgamentos. Entendo ser questionável decisões distintas para casos similares, o que pode trazer sensação de insegurança jurídica para uns e falta de credibilidade para outros.
 
4 - Como o senhor tem visto o papel dos clubes no direito desportivo? Eles têm colaborado ou normalmente usam a Justiça para, como se diz na gíria, jogar para a torcida?
Desde o início de vigência da Lei Pelé, em 2001, os clubes foram se adaptando às novas previsões legais e buscando formar suas estratégias de negócio com olhar às garantias trazidas na citada lei, em especial às relacionadas à formação desportiva dos atletas. Certo que muitos clubes encontram dificuldades na melhor formatação de suas linhas de trabalho, muito fruto da ausência de continuidade no modelo de gestão dos clubes, ante as características próprias do modelo associativo que predomina na maioria dos clubes brasileiros.
 
5 - A Lei Pelé prevê que clubes que devem três meses de salários estão sujeitos a perda de pontos. Apesar de esse ser um problema recorrente no Brasil, dificilmente vemos os clubes, principalmente na Série A do Campeonato Brasileiro, sofrerem esse tipo de punição. Por que isso acontece?
A Lei Pelé prevê, em seu artigo 31, que o clube que estiver em moral salarial ou do direito de imagem, ainda que parcial, pelo período igual ou superior a três meses poderá ter declarada a rescisão indireta do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, ficando o atleta livre para firmar contrato com qualquer outra entidade de prática desportiva e, ainda, cobrar do clube inadimplente o valor da cláusula compensatória desportiva, cujo valor usual é a totalidade dos salários que seriam devidos até o término do contrato de trabalho. Nos últimos anos, visando buscar o equilíbrio financeiro nas competições esportivas, a CBF introduziu, nos Regulamentos Específicos de Competições, a previsão de possibilidade de punição de clubes inadimplentes com seus atletas perante a Justiça Desportiva, desde que feita denúncia por algum atleta, em nome próprio, ou por meio do sindicato da classe. Para que o clube venha efetivamente a ser punido com a perda de pontos na competição, há abertura de procedimento perante o STJD e, no curso do processo, há concessão de prazo para que o clube cumpra com suas obrigações perante os atletas; caso não o faça, a punição de perda de pontos pode ser aplicada. Neste momento, há um procedimento no STJD em face do Avaí ante a denúncia feita pelo sindicato dos atletas sobre o inadimplemento salarial de alguns atletas.
 
6 - Ainda sobre clubes devedores, as recentes adesões de Cruzeiro e Botafogo ao modelo SAF (Sociedade Anônima do Futebol) ganharam destaque após a sanção da chamada lei do clubeempresa. Do ponto de vista jurídico, que análise o senhor faz dessa lei?
A Lei das SAFs tem potencial de transformação, para melhor, da atual realidade do futebol brasileiro mas, necessariamente, passa pela profissionalização das pessoas envolvidas na gestão dos clubes; a lei, por si só, não resolverá o amadorismo e falta de responsabilidade dos gestores dos clubes nacionais. As razões que podem levar um clube a criar ou se transformar em uma SAF são variadas e nos exemplos citados na sua pergunta, há o forte componente do estado de insolvência que os clubes se encontram; nestes casos, o poder de negociação dos clubes se enfraquece e a sua valuation pode ser aquém do efetivo valor da marca. Outro aspecto importante é a quebra de paradigma com o modelo atual, onde os dirigentes pensam no imediato, contraindo dívidas impagáveis pensando na montagem de elencos que não se enquadram no orçamento do clube; uma SAF, como o Cruzeiro, passa a ser gerida com análise fria e objetiva quanto a viabilidade econômica do projeto, o que muitas vezes conflita com a paixão do torcedor, como visto no recente caso da não permanência do goleiro Fábio. No entanto, o modelo das SAFs potencialmente trará segurança jurídica e comercial para que investimentos sejam feitos nos clubes brasileiros que adotarem este formato societário, o que entendo ser muito positivo.
 
7 - A transferência de Neymar do Santos para o Barcelona em 2013 foi muito polêmica, com o Santos recebendo menos da metade do que embolsou a empresa da família do jogador. O que foi que mais chamou a atenção do senhor nesse caso?
A transferência do atleta Neymar do Santos para ao Barcelona é permeada de muitas polêmicas e pontos de vista. Sem entrar em análise jurídica sobra a transferência, até por não ter acesso aos contratos firmados, um fator precisa ser lembrado: o Santos optou, na relação com o Neymar, muito mais o retorno técnico e financeiro proporcionado pelos anos de atuação do atleta no futebol brasileiro do que buscar o melhor valor para a sua transferência. Inegavelmente que, no aspecto desportivo e comercial, enquanto o atleta esteve atuando no futebol brasileiro, o sucesso das partes envolvidas foi evidente.
 
8 - Na sua opinião, há algum item nas leis esportivas, tanto do Brasil como internacionais, que tenha ficado datado, que demande uma revisão?
Um aspecto que entendo deva ser melhorado, tanto na Lei Pelé, com aplicação nas questões nacionais, como no Regulamento de Status e Transferência de Jogadores (RSTP, na sigla em inglês) da Fifa, para as demandas internacionais, é a proteção e majoração das indenizações devidas aos clubes que desenvolvem o processo de formação desportiva dos atletas. Na atual conjuntura, os clubes considerados formadores têm dificuldades na manutenção por razoável período de tempo de atletas que formam que precocemente atingem destaque na equipe profissional, fato notório nos grandes clubes brasileiros. Alguns clubes adotam estratégia de apenas subir atleta para a equipe profissional após a formalização de vínculo contratual que lhes resguarde mas sabemos que alguns clubes, inclusive por necessidade, precisam promover os jovens para compor os elencos profissionais antes de completarem a maioridade, o que fragiliza a relação em desfavor dos clubes por imposição de limite máximo de duração dos contratos de trabalho para atletas menores (três anos), sob o prisma do RSTP-Fifa.
 
9 - A pandemia de Covid-19 criou alguma situação nova ou peculiar para o direito desportivo? Se sim, o senhor poderia citar algum caso?
A pandemia afetou a economia e relações de trabalho em todo mundo e não foi diferente com o microuniverso do esporte e do direito desportivo. Tivemos a adequação de regulamentos de competições esportivas, como o aumento do número de substituições numa partida de futebol, por exemplo, bem como uma provisória alteração em artigos da Lei Pelé que dispunham sobra a duração mínima do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, adequando à realidade de parada das competições esportivas por algum tempo e sua posterior retomada. Em razão da crise financeira em diversas áreas, vimos alguns contratos de patrocínio esportivo sendo rescindidos de forma unilateral, assim como a modificação nos valores pagos pelas transmissões esportivas. Os desafios ainda estão presentes e o direito, mais do que nunca, se faz presente e necessário para a pacificação do ambiente esportivo, nas suas mais amplas e variadas vertentes.

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