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Entrevista de Domingo

Em tempos de pandemia, coletividade é substituída pelo egoísmo, diz Champlin

Para o antropólogo e terapeuta, polarização política ajudou a agravar o individualismo

Por Adriana Martins - Redação BS9

04/07/2021 - domingo às 07h00

Americano radicado no Brasil, Darrell Champlin diz que jamais votaria em Donald Trump - (foto: arquivo pessoal)

Qualquer conversa com o antropólogo e terapeuta Darrell Champlin é uma aula. Ex-professor universitário, o americano que vive em Santos há mais de 30 anos faz uma análise da sociedade atual em tempos de pandemia. E confessa que imaginou que a humanidade, pelo fato de o mundo inteiro estar no mesmo barco, passaria a ser mais empática, generosa. Ledo engano. “Cheguei a acreditar que poderíamos progredir, mas o que fizemos foi dar alguns passos para trás”.
 
Nesta entrevista, Champlin – que é autor dos livros O Portal dos Sonhos; iEu, como desacelerar uma mente turbinada na era da ansiedade e Antropo+logia – fala, ainda, sobre polarização política, doenças emocionais, redes sociais e sobre o que devemos fazer para nos tornarmos mais empáticos.
 
1- Em um post recente, o senhor escreveu que a coletividade foi substituída pelo individualismo, pelo egoísmo. É um fato recente, há um marco nesse sentido, ou na verdade sempre fomos individualistas?
Tinha-se a ideia nas Ciências Sociais, lá atrás, de que o ser humano era igualitário, generoso, preocupado com o vizinho. Uma criatura que, por ter aprendido a viver em sociedade, teria aprendido a compartilhar. O que eu pensei quando a pandemia começou em 2020: agora a verdadeira natureza de generosidade, empatia e partilha do ser humano vai aparecer. E pensei isso porque o mundo inteiro estava no mesmo barco, um barco afundando. A realidade foi totalmente oposta, com uma resposta que já se via nas sociedades primitivas de caça, de 10 mil, 30 mil anos atrás. Diferentemente do que se pensa sobre essas sociedades, o homem primitivo levava a carne para o seu grupo e enterrava, escondia dos demais grupos: ‘não tem carne aqui, não’. É o meu umbigo primeiro e, se der, penso no seu lá para frente.
 
2- As redes sociais têm ajudado a escancarar esse egoísmo e pensamentos que antes ficavam escondidos. Na pandemia, por exemplo, o que se vê é que boa parte da população está apática diante da marca de mais de 500 mil mortes por causa de uma doença. Como não se chocar com isso?
Talvez a gente comece a ter uma noção melhor para essa resposta depois de um bom tanto de pesquisas, daqui a cinco, dez anos. Onde foi que a humanidade errou neste momento em que se chegou a acreditar que poderíamos progredir, mas o que fizemos foi dar alguns passos para trás? É uma questão multifacetada. E acredito que uma dessas facetas é que, ao longo dos últimos 15 anos, vivemos uma divisão política muito profunda. De repente, o ultraconservadorismo reagiu a uma ala extremamente liberal, e isso acelerou a expressão do egoísmo. E não é só no Brasil. Aconteceu na Alemanha, colocaram o (Donald) Trump nos Estados Unidos. Há vários lugares do mundo em que existe uma rachadura profunda. E quando se olha pelo espectro das redes sociais, é de ficar horrorizado. As pessoas que diziam antes não ter político de estimação são as mesmas pessoas que hoje têm um político de estimação. Então, as redes sociais são outra faceta importante, por permitirem que as pessoas se expressem, com ou sem razão, sem ter de colocar a cara para bater, muitas vezes sob anonimato. E não é porque alguém defende ou não a cloroquina, por exemplo. É muito antes disso. É porque te acho gordo, então eu te critico. Te acho magro, te critico. Porque você é negro, e eu não sou. As redes sociais criaram um ambiente onde é possível se expressar às escondidas contra qualquer coisa da qual não se gosta. Voltando à sociedade primitiva, é o ‘não tem carne aqui’. Ou seja, as fake news vêm do início da história da humanidade e giram ao redor da desigualdade.


3- Desigualdade que sempre existiu.
Nunca houve igualdade.  E não vai haver em um momento tão próximo. Hoje, o que acontece, principalmente nas redes sociais, é que as pessoas se aproveitam da igualdade delas para atacar a igualdade dos outros. Sei que é contraditório o que acabei de falar. Mas por que é tão fácil dizer que o planeta não é redondo, mas é plano? Porque há uma plateia que vai aceitar. É aquela história da igualdade dos primus interpares (expressão usada para designar alguém que se destaca entre outros semelhantes). Já se eu estiver fora desse grupinho que acredita que a Terra é plana, serei profundamente atacado. E por que as pessoas mantêm absurdos como esses? Porque elas encontram eco, e isso gera a sensação de pertencimento. O presidente fala que a terra é plana ou que se você tomar a vacina vai virar jacaré, e há uma legião que, por pertencimento, vai aceitar a opinião. 
 
4- Mas vai aceitar de verdade, cegamente, ou mesmo sabendo que está errado?
Acredito que algumas pessoas realmente passam a acreditar na mentira que é contada muitas e muitas vezes. Eu não sou de esquerda, nem de direta. Não defendo um, nem outro. Sou de centro-direita politicamente, então não estou representado por nenhuma das partes envolvidas nessa polarização, de verdade. Mas há pessoas que acreditam que o governo atual conseguiu terminar projetos que estavam parados há 30 anos em um ano. Eu tenho uma prima, americana, que é profundamente trumpista. Por ideologia política, eu votaria em um republicano antes de um democrata, mas não votaria em alguém como Donald Trump, que é republicano. Por uma questão de mínimo discernimento. Mas essa minha prima está dizendo que ele vai voltar. E o que o Trump fez é o que estamos vendo a extrema direita fazer em países da Europa, no Brasil, um movimento tão nocivo quanto a extrema esquerda, todos girando em torno do ‘eu sim e você não, porque você é diferente de mim’. Em todos os aspectos. Então, qualquer um que represente aquilo a que me proponho a acreditar, eu vou aceitar, vou votar, vou manter. Qualquer um que seja. É a minha sobrevivência em detrimento da sua sobrevivência. 
 
5- Então essa apatia em relação às mais de 500 mil mortes tem a ver com o ‘não foi comigo, eu estou vivo, não sou coveiro’?
Também. E não é só isso. É a questão do pertencimento a um grupo onde isso é dito. E isso é primordial para a sobrevivência, não física necessariamente, mas emocional. Os recursos da humanidade são tão abundantes hoje, que você não precisa mais sair para caçar ou plantar o próprio alimento. A nutrição alimentar não está mais em pauta, como esteve no início da história da humanidade. A nossa necessidade de sobrevivência de agora está muito mais relacionada à forma como eu vivo no meu grupo. É de sobrevivência emocional.

"Morrem mais pessoas, por ano, por suicídio do que pela somatória de acidentes de automóvel e guerras civis pelo mundo. São cerca de 800 mil mortes por suicídio anualmente. Algo muito errado acontece em nossa sociedade" - Darrell Champlin

6- Vivemos hoje, mais do que nunca, uma pandemia de doenças emocionais, mentais. Não é contraditório?
Há um efeito posterior à pandemia, sim, mas isso já vinha acontecendo. Vou te dar um exemplo estarrecedor: morrem mais pessoas, por ano, por suicídio do que pela somatória de acidentes de automóvel e guerras civis pelo mundo. São cerca de 800 mil mortes por suicídio anualmente. Algo muito errado acontece em nossa sociedade. Essa questão do desenvolvimento emocional e das doenças mentais é antiga. E de onde ela vem? É uma questão multifacetada também, que envolve a falta de desafios. A pessoa não tem mais o desafio de se manter, de caçar, como nos primórdios da humanidade. Não há motivação.
 
7- Mas muitos lutam para conseguir emprego, por exemplo, são mais de 14 milhões de desempregados no País. Não é tão simples para todo mundo. 
O desemprego é uma situação dramática realmente, de deixar horrorizada qualquer pessoa com o mínimo de sensação de justiça. Ainda assim, muitos recebem algum tipo de incentivo perto de casa ou do governo. Dão o peixe, mas não ensinam a pescar. Ao mesmo tempo em que essa ajuda é extremamente necessária para a sobrevivência, por outro lado cria uma legião de pessoas submissas a esse processo. E essa é mais uma faceta. 
 
8- Se está na nossa base, na nossa essência esse egoísmo, como mudar isso? O que fazer para que a empatia e a solidariedade sejam dominantes?
Existe uma nova tendência no mundo que envolve o aprendizado de meditação e a mudança de hábitos alimentares rumo ao vegetarianismo ou ao veganismo – não porque o sabor da carne é ruim, mas porque para que você possa comer carne alguém tem que morrer. Quem ainda acredita que os animais são motivados apenas por instinto está ignorando a realidade. Eles têm emoções. Podem não ter a mesma linha de raciocínio que nós temos e agem por instinto com muita frequência, sim, mas reduzir todo o comportamento animal a coisas aprendidas por hábito ou por instinto é um erro. Quero dizer com isso que há uma parcela da sociedade caminhando para ter muito mais compaixão pela existência da vida e do próprio planeta, com uma pegada ambiental também. E essa pequena parcela da sociedade está fazendo barulho, influenciando outras pessoas de maneira importante. O físico quântico Amit Goswami, talvez a pessoa que tenha feito o maior trabalho de integrar as ciências exatas com as ciências humanas hoje, prevê que, no atual ritmo de mudanças do planeta, leva-se mais três gerações, de 150 a 200 anos, para que seja possível ter uma igualdade maior nas nossas sociedades. Já o Dalai Lama fala: se todas as crianças em idade escolar aprendessem meditação, a violência no planeta terminaria em uma geração. Existe esperança? Ô, se existe! Só que tem que acontecer uma mudança profunda de paradigma em diversas dessas facetas que estamos conversando aqui.

"Há uma parcela da sociedade caminhando para ter muito mais compaixão pela existência da vida e do próprio planeta, com uma pegada ambiental também. E essa pequena parcela da sociedade está fazendo barulho, influenciando outras pessoas de maneira importante" - Darrell Champlin

9- Por que a meditação tem um impacto tão importante? E todo mundo pode meditar?
Em quatro minutos de prática, a meditação diminui, em alto percentual, a produção de cortisol, o hormônio do estresse. Se o meu nível de estresse está mais baixo, serei menos agressivo. Este é só o primeiro resultado, o mais simples. Há a mudança para uma pessoa mais equilibrada e menos responsiva, de fuga ou luta. Pessoas que meditam consistentemente há quatro meses ou mais passam a ter menos posturas responsivas. As coisas se tornam menos urgentes. Elas não vão reagir mais às fake news, por exemplo. Claro que os benefícios vão além disso. Há mudança na compaixão, com mais empatia pelas pessoas que te cercam. As diferenças passam a não ser mais tão fortes, e a igualdade se faz mais presente. E qualquer um pode meditar. Mesmo quem diz que não consegue, porque pensa rápido demais. Quem faz esteira ou caminhada, por exemplo. Quando pisar com o pé esquerdo, pensa ‘esquerda’. Com o pé direito, pensa ‘direita’. E fica pensando: esquerda, direta, esquerda, direita, de acordo com as passadas. Dessa forma, vai esquecer dos problemas, com uma espécie de mantra. É a chamada meditação ativa. Temos 70 mil pensamentos por dia, quase 80% deles repetidos e quase a totalidade dos pensamentos repetidos é negativa. Ou seja, pensamos no podre quase o tempo todo. Quando meditamos, esse padrão muda. E pode meditar sentado, fazendo ioga, nadando, mudando o ritmo de respiração. Você nunca vai esvaziar a cabeça, porque seu cérebro foi feito para pensar. Mas se mudar a forma de pensar, deixar de pensar só negativamente, a urgência muda e a vida melhora com um todo. 

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