Orçamentos públicos priorizam asfalto e viadutos em vez da infância e juventude
Essa é a avaliação do advogado e ex-secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, que concedeu entrevista exclusiva à coluna
17/08/2025 - domingo às 02h30No dia 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 35 anos de existência em meio a um cenário de avanços importantes, mas também de grandes desafios para sua plena aplicação. Para o advogado Ariel de Castro Alves, integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o ECA é uma das legislações mais avançadas do mundo, mas ainda sofre com a distância entre a teoria e a prática.
O jurista destaca que o ECA trouxe uma mudança de paradigma em relação ao antigo Código de Menores, ao priorizar políticas públicas de prevenção e proteção integral, mas aponta a falta de prioridade nos orçamentos públicos como o principal entrave para sua efetivação.
Em entrevista exclusiva concedida à coluna, Alves também aborda as conquistas do ECA, os desafios atuais como evasão escolar, crianças em situação de rua e dependência química, além de temas polêmicos como a maioridade penal e a ressocialização de adolescentes em conflito com a lei.
Ex-secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-presidente do Conselho Nacional dessa área (Conanda), o advogado também analisa como o ECA vem se adaptando aos novos tempos, com legislações que enfrentam questões como cyberbullying, assédio online e violência doméstica.
Confira abaixo a entrevista completa concedida à coluna:
Como o senhor avalia a aplicação e o conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao longo desses 35 anos?
Quanto à aplicação e o conhecimento da lei, sabemos que o ECA é amplamente conhecido pela sociedade. Ele tem bastante citação nos meios de comunicação, mas geralmente acaba sendo mais mencionado em casos de adolescentes que se envolvem crimes. Muitas vezes, a citação acaba sendo equivocada, no sentido de que o estatuto apenas serviria para proteger adolescentes infratores. Na verdade, o Código de Menores, que é anterior ao ECA, tinha preocupação apenas com aqueles que eram denominados, na época, de menores abandonados e delinquentes.
Quais eram os pontos críticos do Código de Menores?
A lei estabelecia uma espécie de recolhimento desses chamados menores e delinquentes para as fundações do Bem-Estar do Menor (Febem’s). Esse foi o grande problema daquela legislação por ter um tratamento que não diferenciava, não levava em conta cada tipo de situação da criança explorada no trabalho infantil, explorada sexualmente, vítima de violência doméstica, daqueles em situação de orfandade e abandono e daqueles que estavam envolvidos em atos infracionais. Por esse motivo, a legislação anterior acabou não tendo bons resultados na sociedade brasileira e houve todo um movimento para substituir aquela legislação e criar o ECA.
O ECA trouxe uma visão mais abrangente e focada na prevenção dos direitos da criança e do adolescente?
Exato. No ECA, a maioria dos seus artigos é voltado para políticas públicas, programas e serviços para evitarmos que tenhamos crianças e adolescentes abandonadas e envolvidas com atos infracionais. Se o estatuto estivesse realmente sendo cumprido, nós quase não teríamos adolescentes envolvidos com atos infracionais, crianças em situações de abandono, em situação de rua, vítimas de violência, de abandono, entre outras situações. A lei tem esse aspecto de prevenção para que esse público seja protegido integralmente e para que os órgãos públicos garantam a prioridade absoluta, inclusive com destinação privilegiada de recursos para a área da infância e da juventude. Mas, infelizmente, essa não é a realidade. Nós temos uma enorme diferença entre a lei e a prática. A grande dificuldade está exatamente na falta de prioridade absoluta por parte das prefeituras, dos governos estaduais e do Governo Federal com relação às políticas públicas e aos orçamentos voltados à proteção da infância e da adolescência.
Quais são os principais entraves para que o ECA seja plenamente aplicado?
Os principais entraves para a aplicação do ECA estão exatamente na falta de prioridade dos orçamentos públicos. E essa falta de prioridade não é só para a área de proteção de crianças e adolescentes, mas para a Assistência Social como um todo. Orçamentos públicos priorizam a construção de viadutos e o recapeamento do asfalto em vez de investir na proteção da infância e da juventude, das pessoas em situação de rua, em situações de miséria, de pobreza e de vulnerabilidade. Falta prioridade com a área social no País. São muitos discursos equivocados que defendem o estado mínimo, que defendem até que não deveriam existir programas sociais, como Bolsa Família, que busca tirar as pessoas da situação de miséria, de pobreza, de fome, garantindo mínimos recursos e condições para se manterem e manterem seus familiares e dependentes.
A Constituição Federal não é seguida à risca quando falamos de crianças e adolescentes...
De fato, nós temos essa grande dificuldade no Brasil. A prioridade absoluta ainda é uma ficção, não é uma realidade, apesar de estar prevista na Constituição Federal desde 1988, no artigo 227, de que as políticas de proteção de crianças e adolescentes deveriam ser tratadas como prioridade absoluta e que deveríamos ter uma destinação privilegiada de recursos para proteção da infância e adolescência. Infelizmente, essa é a grande dificuldade que temos nos dias de hoje. Há, ainda, uma tradição no Brasil de violência contra os setores mais vulneráveis e de violência contra as crianças e adolescentes. Por esse motivo, temos números chocantes divulgados recentemente pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Disque 100. Por hora, temos 33 casos de violações aos direitos de crianças e adolescentes, geralmente casos de violência e de negligência que chegam via Disque 100. Todos os dias, temos 153 casos de estupros de crianças e adolescentes no País e, diariamente, temos 14 assassinatos de crianças e adolescentes.
É possível dizer que tivemos avanços na destinação de recursos nas políticas públicas de crianças e adolescentes?
Temos uma população de quase 50 milhões de crianças e adolescentes, segundo dados do Censo de 2022, e mais de 50% delas vivem em situação de miséria e de pobreza. Isso evidencia que os direitos não estão sendo respeitados e que o ECA não tem atingido esse público, que não está se desenvolvendo adequadamente. O Brasil se comprometeu junto à Organização das Nações Unidas (ONU), através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em erradicar a exploração do trabalho infantil até 2025. Mesmo assim, ainda temos cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes nessa condição. Apesar de alguns avanços e aumento dos investimentos em áreas que impactam a proteção da infância e adolescência, conforme divulgado pela Unicef, temos apenas 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto) investido em ações e em políticas públicas por meio de orçamentos que impactam a infância e adolescência no País. Isso representa em torno de 5% do total do orçamento federal, mas, se nós falamos em prioridade absoluta, 5% não demonstra que, de fato, existe essa prioridade absoluta, que seria uma maioria dos recursos sendo empregada na área de proteção. Ainda precisamos avançar muito mais.
A responsabilização de adolescentes em atos infracionais ainda é um tema polêmico. Como o ECA trata essa questão e quais os cuidados necessários nesse debate?
Esse debate da redução da maioridade penal é sempre retomado, mas o que tem prevalecido é a questão da cláusula pétrea de que o adolescente tem o direito de responder com base na legislação especial, que é o ECA, por meio das medidas socioeducativas, incluindo a internação com base nessa legislação. Esse é um critério que o Brasil, junto com a maioria dos países do mundo, adotou por ser um país signatário da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, de 1989, que prevê que, quando o adolescente comete um ato infracional, ele tem que ser tratado de forma totalmente diferente dos adultos. Já foram apresentados muitos projetos de lei pela redução da maioridade penal e propostas de emenda à Constituição (PECs) que nunca acabaram se efetivando. Ainda que essas propostas sejam aprovadas no Congresso Nacional, provavelmente serão derrubadas no Supremo Tribunal Federal (STF), dentro dessa consideração de que essa questão de a inimputabilidade penal do adolescente não responder com base no Código Penal, mas com base no ECA. Estamos falando de uma cláusula pétrea que só poderia ser modificada em uma nova Assembleia Nacional Constituinte.
Na sua avaliação, seria um retrocesso modificar a lei diante dos apelos de parte da sociedade?
Seria um grande erro, um grande equívoco, pois aumentaria a violência se colocássemos adolescentes em um sistema prisional como o que nós temos hoje, totalmente falido, dominado por facções criminosas e sem qualquer oportunidade de educação, de trabalho, de assistência psicológica e psiquiátrica, de saúde e qualquer tipo de apoio social. Nós temos estabelecimentos prisionais, por exemplo, aqui em São Paulo, com capacidade para 700 presos, mas estão com 1.500, 2.000, que passam o dia todo ociosos e subjugados aos interesses da facção criminosa majoritária aqui em São Paulo, que é o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Como o senhor avalia o trabalho desenvolvido pela Fundação Casa?
Nas unidades de internação da Fundação Casa, os adolescentes possuem atividades, como escola, cursos profissionalizantes, atividades culturais, esportivas e de lazer, assistência psicológica, social, psiquiátrica, atuação e a presença constante das famílias nas visitas em várias atividades socioeducativas. A recuperação é muito mais promissora nas condições que nós temos baseadas no ECA. Nos últimos anos, o índice de reincidência de adolescentes que passam pela Fundação Casa não passa de 30%, enquanto no nosso sistema prisional os índices de reincidência ultrapassam 60%, segundo dados do Ministério da Justiça. Portanto, é muito mais adequado manter os adolescentes em unidades socioeducativas, tanto na internação como na semiliberdade e, principalmente, na liberdade assistida e na prestação de serviço à comunidade, que são medidas executadas por programas da assistência social nos municípios e que acabam tendo mais eficácia também para evitar o envolvimento de adolescentes na criminalidade. Uma prova de que com a mudança da Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor) para Fundação Casa tivemos melhorias significativas é que hoje são raras as notícias de fugas, rebeliões e motins nessas unidades. Houve uma diminuição muito grande de internos na própria Fundação Casa. Há 10 anos, tínhamos mais de 10 mil internos. Hoje, esse número não chega a 6 mil. Várias unidades foram fechadas por falta de internos, o que demonstra a diminuição da reincidência e a melhoria do processo de ressocialização.
O ECA está preparado para lidar com os desafios do século 21, como o uso excessivo de telas, o cyberbullying e a exposição digital precoce?
Quando o estatuto surgiu lá em 1990, nós jamais imaginávamos que teríamos todo o aparato tecnológico atual com a internet, redes sociais, inteligência artificial, smartphones e todo esse acesso para as próprias crianças e adolescentes, que nasceram nessa geração do mundo virtual. Com isso, o ECA sofreu inúmeras alterações com legislações para o combate à pornografia infantil, para quem armazena vídeos, fotos nos seus computadores, celulares, assim como para quem distribui, vende e faz montagens. Todas essas situações geram punições e as polícias, tanto Federal como Civil estaduais, têm feito várias operações, investigações e gerado prisões nesse enfrentamento à pornografia infantil. Temos legislações também sobre o assédio por meio da internet, o assédio com a finalidade de adultos marcar encontros com crianças. Houve mudança no prazo de prescrição de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, que passou a contar apenas quando o jovem completa 18 anos, mesmo que o crime tenha ocorrido na infância, porque, muitas vezes, os agressores, principalmente em casos de violência doméstica, são pessoas vinculadas, familiares que têm laços afetivos e, muitas vezes, há a subordinação da criança e do adolescente e ele só vai conseguir romper com isso aos 18 anos de idade. Tivemos legislações tipificando o bullying e o cyberbullying nos últimos anos, a Lei Menino Bernardo, que tratou da proibição de castigos físicos, e a Lei Henry Borel, que tratou das medidas protetivas, inclusive de afastar os agressores das suas vítimas durante o processo de investigação e após a condenação nos processos criminais, e legislações que foram aprimoradas com base na adoção, na convivência familiar e comunitária, prevendo programas de guarda subsidiada. Em resumo, tivemos um processo de aprimoramento do ECA e de ampliação de penas em crimes contra crianças e adolescentes. Não vejo novas necessidades de legislações nessa área, exceto a regulamentação sobre a proteção de crianças e adolescentes na internet e nas redes sociais, para que as empresas e plataformas ao invés de só lucrarem com violações dos direitos de crianças e adolescentes, passem a ter obrigação de prevenir as violações, sob pena de serem responsabilizadas por meio de multas, suspensões e bloqueios de páginas e conteúdos.
Diante desse cenário, é preciso, de fato, cumprir as leis que já existem?
Esse é o grande problema do Brasil. O jornalista Gilberto Dimenstein, que já é falecido e colaborou muito no processo do ECA, tratava justamente da cidadania de papel, ou seja, nós temos excelentes leis, como a Constituição, o próprio ECA e várias legislações nas áreas da Assistência Social, Saúde e Educação que protegem a infância e a juventude, mas, infelizmente essas legislações nem sempre saem do papel. Isso é o que tem acontecido com o próprio ECA, apesar de vários avanços. Um desses avanços foi a redução da mortalidade infantil. Isso avançou bastante por meio de previsões do ECA quanto ao tratamento do pré-natal das gestantes, incluindo até a primeira infância. Houve até uma lei também chamada de Estatuto da Primeira Infância, que modificou e fez acréscimos ao ECA. Essa é uma área que teve importantes avanços, apesar de que ainda o Brasil tem dificuldade em garantir vagas em creches para as crianças e só 40% das crianças de até 3 anos de idade têm acesso às creches, o que é um direito da criança ao ensino infantil nesses primeiros anos de vida e o que é direito também do pai, da mãe, do responsável que precisam trabalhar, que precisam fazer cursos, que precisam se preparar para o mercado de trabalho ou mesmo procurar emprego e precisam que seus filhos estejam em um local adequado como as creches sendo atendidos.
Além da falta de creches, um dos desafios é enfrentar a evasão escolar. Como você avalia as ações atuais para garantir a permanência das crianças e adolescentes nas escolas?
Ao longo dos últimos anos, tivemos a ampliação do acesso ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Hoje, o País oferece vagas para todas as crianças e adolescentes no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, mas nós sabemos que um dos problemas tem sido a evasão escolar no Ensino Médio. Foi muito importante a criação do programa Pé de Meia, do Governo Federal, que oferece um subsídio financeiro, uma bolsa aos estudantes do Ensino Médio para que continuem estudando. É importante também ampliarmos o ensino em tempo integral para evitar que crianças e adolescentes estejam durante alguns períodos do dia em situações de ociosidade ou em situações de risco nas ruas ou mesmo no acesso à internet.
Outro desafio está relacionado às crianças e adolescentes em situação de rua. As políticas públicas voltadas a esse segmento deixam a desejar?
Muito mais precisa ser feito em razão do crescimento do número de famílias em situação de rua. Tem faltado programas sociais para realizar a abordagem e a educação social de rua para que essas crianças e adolescentes voltem a conviver com suas famílias, voltem a manter vínculos com a escola e deixem a situação de rua. Só em São Paulo, há em torno de 4 mil crianças e adolescentes vivendo nas ruas, segundo o censo que foi feito há três anos. Agora, no Brasil, nós sequer temos um censo de quantas crianças e adolescentes estão em situação de rua, o que é uma grande falha do poder público no âmbito federal. No início do terceiro mandato do presidente Lula, quando estava como secretário Nacional da Criança e do Adolescente, planejamos como uma das prioridades fazer esse levantamento nacional, que acabou não se efetivando. Essa é uma das áreas que deve gerar uma a maior preocupação do poder público, que são as crianças e adolescentes em situações de abandono, expostas a acidentes, expostas ao tráfico de drogas, à exploração sexual, à exploração do trabalho infantil, expostas também ao consumo e à dependência de drogas, vivendo nas ruas das cidades brasileiras de médio e de grande porte. Infelizmente, é uma das realidades mais graves que nós temos hoje no País.
E muitas crianças e adolescentes carecem de um atendimento por causa da dependência de drogas e problemas psiquiátricos…
Realmente, falta um atendimento adequado daqueles que têm sofrimentos mentais, problemas psiquiátricos e que também possuem dependência de drogas. Além dos Centros de Apoio Psicossociais (CAPSs), nós precisaríamos ter residências terapêuticas, espécies de abrigos voltados a crianças e adolescentes dependentes de álcool e outras drogas, em uma atuação conjunta da Saúde e da Assistência Social. Infelizmente, nós não temos esses serviços nos municípios brasileiros.