Adami Campos
26/12/2025 - sexta às 18h04
Salário não é apenas custo; é peça do motor do desenvolvimento.
O editorial veiculado pelo jornal O Estado de S. Paulo, sob o título “A aposta leviana no salário mínimo”, constitui um documento exemplar da persistência do retrogrado pensamento econômico ortodoxo e avesso ao liberalismo real que vigora no debate público brasileiro. Ao qualificar a política de valorização real do salário mínimo como uma “aposta leviana” e um “erro primário”, o texto não apenas ignora os fundamentos de uma macroeconomia aplicada e empírica, como também advoga, sob o manto de uma suposta responsabilidade fiscal, o desmantelamento dos pressupostos materiais da Constituição Econômica de 1988.
A análise econômica mencionada no recente editorial do Estadão reitera um dogma persistente, porém empírico e teoricamente fragilizado, do pensamento liberal clássico: a visão do salário estritamente como custo de produção. Ao condenar a política de valorização do salário mínimo sob o pretexto do “equilíbrio fiscal” e do risco inflacionário, o texto incorre no que Keynes identificou como a incapacidade de compreender a natureza macroeconômica dos agregados. A premissa de que a contenção salarial gera saneamento das contas públicas ignora o princípio da Demanda Efetiva. Em uma economia capitalista, o salário não é apenas um passivo contábil para as firmas ou para o Estado; ele é o componente fundamental da renda das famílias e, consequentemente, o motor do consumo que valida as decisões de investimento.
A crítica central ao editorial reside na falácia da composição. O que pode parecer racional para uma empresa individual (reduzir custos salariais para aumentar a margem) é desastroso quando aplicado à economia como um todo. A compressão da massa salarial, defendida implicitamente pela crítica à indexação do orçamento, reduz a propensão marginal a consumir da classe trabalhadora — justamente o estrato social que converte quase a totalidade de sua renda em consumo imediato. Ao deprimir a demanda agregada, a política de austeridade salarial desincentiva o investimento privado (que depende da expectativa de vendas futuras) e, ironicamente, corrói a base de arrecadação tributária, agravando o déficit que se pretendia combater. Portanto, a política de valorização do salário mínimo não é um “populismo fiscal”, mas um mecanismo indispensável de estabilização do ciclo econômico e de manutenção do fluxo de renda.
A experiência internacional contemporânea oferece um vasto repositório empírico que refuta as previsões catastróficas da ortodoxia brasileira. A Alemanha, bastião da prudência fiscal na Europa, introduziu um salário mínimo estatutário em 2015 (Mindestlohn), contrariando décadas de resistência empresarial. Ao contrário das previsões neoliberais de desemprego em massa, a medida fortaleceu o mercado interno alemão, reduzindo a dependência excessiva das exportações e sustentando o nível de emprego através do efeito multiplicador da renda. A Alemanha compreendeu que a competitividade não pode se basear na precarização (“dumping social”), mas sim na produtividade induzida por uma demanda robusta.
Outro exemplo paradigmático é o da Espanha sob a atual coalizão progressista. Desde 2018, o país realizou aumentos agressivos no Salário Mínimo Interprofissional (SMI), elevando-o em mais de 50% em um curto período. A ortodoxia, tal qual o editorial em questão, previu o colapso do emprego. O resultado, todavia, foi o oposto: a Espanha liderou o crescimento na Zona do Euro no período pós-pandemia, com redução histórica do desemprego. A transferência de renda para a base da pirâmide dinamizou o setor de serviços e o comércio local, provando que o aumento do poder de compra atua como um “colchão” anticíclico. Até mesmo nos Estados Unidos, a administração Biden, ao buscar fortalecer o poder de barganha laboral e defender o aumento do piso salarial, reconhece que a era do trickle-down economics (a ideia de que a riqueza “goteja” do topo para a base) falhou. A prosperidade econômica é construída “from the middle out and the bottom up” — uma tradução política direta da ênfase keynesiana na demanda.
Sob a perspectiva do Direito Econômico, a Constituição de 1988 não consagra a austeridade como fim em si mesmo, mas a valorização do trabalho e a dignidade humana como fundamentos da ordem econômica. A insistência na desindexação do salário mínimo em relação ao orçamento público reflete uma inversão de hierarquia constitucional, onde metas contábeis de curto prazo se sobrepõem aos objetivos estruturantes da República. A Constituição Federal não estabelece a estabilidade monetária ou o superávit primário como fins últimos da República, mas sim a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades. O salário mínimo é um instituto jurídico de garantia do “mínimo existencial”, e sua vinculação aos benefícios da seguridade social é uma trava de segurança contra a erosão inflacionária da dignidade humana. A proposta de desvinculação (desindexação) representa uma tentativa de reformar a Constituição por via oblíqua, subordinando os direitos sociais aos imperativos do rentismo financeiro. O que o texto chama de “gambiarras” do governo são, na realidade, tentativas de manter de pé o pacto social em um cenário onde o teto de gastos e o arcabouço fiscal funcionam como mecanismos de contenção da soberania popular sobre o orçamento.
Em suma, a tese sustentada pelo editorial do Estadão é anacrônica e desprovida de suporte empírico nas economias avançadas ou mesmo em desenvolvimento. A valorização do salário mínimo, ao expandir a demanda efetiva, gera incentivos para que as empresas invistam em tecnologia e produtividade, em vez de sobreviverem à custa de baixos salários. O caminho para o desenvolvimento nacional e para a solidez fiscal de longo prazo exige o abandono do rentismo estéril e a adoção de uma política salarial que reconheça o trabalhador não como um custo a ser minimizado, mas como o agente dinâmico indispensável à circulação da riqueza e ao crescimento econômico sustentado.
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